Boa Vista, ontem e hoje…

JOSÉ LELIS NOGUEIRA

    Roteiro elaborado como enredo do Grêmio Recreativo Escola de Samba da Boa Vista para o carnaval pindense de 1994, a pedido de Felipe César, então presidente da agremiação. Por circunstâncias próprias da época, o desfile não ocorreu. A narrativa, agora publicada, segue seu formato original, devendo o leitor compreendê-la reportando-se à ocasião da escrita. Meus agradecimentos a Zé Santeiro e a Geraldo Sacramento pela inestimável colaboração durante a pesquisa.

    Boa Vista: região legendária cortada por largas ruas planas e acidentadas ladeiras, tendo seus limites demarcados pelo Bosque da Princesa, pelo Museu, pelo Quartel, pela fábrica da Coca-Cola e pelo rio Paraíba.

    De seu plano mais alto oferece, a quem contempla o norte, um privilegiado e incomum panorama. Entre o rio e a serra, campos e arrozais formam uma extensa e plana paisagem verdejante, contrastada ao fundo com o intenso azul dos contrafortes da Mantiqueira. Ao entardecer, dela se avista um deslumbrante espetáculo, anunciando a noite, num vibrante momento da natureza: o pôr do sol.

    Bairro mais antigo da cidade, sua história se confunde com a própria história de Pindamonhangaba, pois em seu solo o padre João de Faria Fialho erigiu a capela primitiva que deu origem à Freguesia de Nossa Senhora do Bom Sucesso, semente da futura Vila Real.

    Estrategicamente situada à margem direita do Paraíba, num ponto onde o rio mais se aproxima da cidade, a região foi testemunha do drama da conquista. Com a vinda dos primeiros exploradores brancos, os habitantes primitivos, índios Puris e Gueromimis, procuraram refúgio em lugares mais distantes. Os que eram “caçados” tornavam-se escravos ou eram catequizados, formando aldeamentos, dando origem a uma raça mestiça.

    Paragem obrigatória para os desbravadores do sertão, a região era cortada por trilhas usadas pelos bandeirantes, a caminho do ouro das Minas Gerais. Do local partiram o padre bandeirante João de Faria Fialho para co-fundar Vila Rica, hoje Ouro Preto, e a bandeira de Salvador Fernandes Furtado, pindense fundador da cidade mineira de Mariana.

    Os anos passaram e a cidade enriqueceu graças às imensas lavouras cafeeiras. No alto da Boa Vista, nas vizinhanças do atual quartel, ergueram-se soberbos casarões, a servir de residência a ricos fazendeiros senhores de escravos.

    Aí se destaca a atuação do negro, impulsionando o progresso com o penoso trabalho braçal no campo e na cidade, e influenciando, com sua cultura, costumes e crenças, muitas das nossas características regionais.

    Veio o declínio. O cansaço das terras e a abolição da escravatura marcaram a decadência do ciclo do café. Os casarões começaram a dar lugar a armazéns, ranchos e hospedarias. O mercado municipal que funcionava numa construção própria, ampla e nova, foi transferido para um antigo casarão nas proximidades, popularmente conhecido como “Casa do Barão”. A mudança se deu para que o prédio construído para ser mercado se convertesse em sede do quartel. Nas cercanias desenvolveu-se um concentrado comércio abrigado em antigos casarões, para onde convergiam os tropeiros viajantes.

    A antiga rua do Pito, entrada da cidade pelo caminho da ponte do Paraíba, era passagem das tropas vindas das terras altas da Mana e sul de Minas. Onde hoje está localizada a fábrica da Coca-Cola, um espaçoso casarão abrigava a Casa do Tropeiro.

    Com chapéu, roupa simples e boa montaria, não poderia faltar ao verdadeiro tropeiro o “tapa-cara”, laceado à sua cintura como se fosse um avental. Com ele o tropeiro cobria a visão do animal nos momentos das manobras de carga e descarga.

    A tropa, em geral constituída de dez muares, comumente vinha acompanhada por um garoto montado numa bela égua, chamada “madrinha da tropa”. A fila de muares tinha sempre à frente a “mula guia”, toda enfeitada, com um peitoral prendendo nove cincerros e uma bandeirinha pendurada na ponta do arrocho da sub-carga. Ela era treinada a marcar a cadência da tropa até o último animal da fila, o chamado “burro de coice”.

    Uma colônia ribeirinha se concentrava à margem do Paraíba entre o Bosque e a atual ponte. Eram os piraquaras, com suas casas cobertas de sapé e paredes de pau-a-pique moldadas com barro à sopapos. Artistas da pesca, fabricavam suas próprias ferramentas de trabalho. Da folha do tucum produziam a linha; do bambu faziam o covo e o pari, uma forma de balaio afunilado que servia de armadilha para peixes. Uma série de anzóis amarrados em um longo cipó constituía o espinhel; pequenas varas com linhas e anzóis espetadas nas margens do rio formavam os catoeiros. Do cipó, da taquarapoca ou taquaraçu fabricavam cestas e balaios; do guapuruvu construíam a canoa de um pau só.

    Os piraquaras sobreviviam do consumo e venda de peixes, negociados por cambadas ou fieiras, geralmente concentrados em barracas próximas ao rio. Entre eles destacavam-se alguns figureiros, cujo trabalho era moldar pitos, chaleiras, chocolateiras e panelas feitas de barro queimado em caieiras, uma espécie de forno primitivo localizado no terreiro de suas casas. Imitando os utensílios produzidos faziam miniaturas para serem vendidas como enfeites ou brinquedos.

    Junto ao Bosque existiu um movimentado porto. Uma linha regular de navegação fluvial, destinada ao transporte de cargas e passageiros, cobria um trajeto que ia do Porto da Caçapava até Cachoeira Paulista, sob a direção da Companhia de Navegação do Alto e Médio Paraíba – Marcondes Chaves & Cia. Ltda.

    Com a construção da Estrada de Ferro Central do Brasil, o transporte pelo rio caiu em desuso e foi desativado. Posteriormente, no local do porto funcionou um frequentado clube de regatas.

    Margeando o Paraíba, um grande espaço, denominado Largo do Ipiranga, foi transformado em praça, recebendo o novo logradouro o nome de praça Cornélio Lessa (1878). Ali foi implantado um belo jardim, idealizado por renomados paisagistas. As pequenas mudas e sementes lá lançadas formaram as frondosas árvores do Bosque da Princesa.

    Com o passar dos anos, a “canoa de um pau só” cedeu lugar aos modernos caiaques dos atletas da Apicano que tanto glorificam o esporte pindense, acumulando vários títulos nacionais e internacionais e ao ponto de ser considerada a melhor equipe brasileira de canoagem.

    A rua Amador Bueno foi palco de um movimentado vai-e-vem de estudantes. Eram os alunos do Externato de Pindamonhangaba, onde o professor José Pinto Pestana dirigia um famoso curso preparatório à várias escolas, principalmente para os vestibulandos da Escola de Farmácia e Odontologia de Pindamonhangaba instalada no palacete hoje ocupado pelo Museu.

    Continuando a tradição educacional, a região é sede de diversas escolas como Clube do Mickey, Serelepe, Arte e Vida, Cursinho e o tradicional João Gomes de Araújo.

    No futebol, a Ferroviária tem sua própria história. O Estádio Pinheiro Júnior, no coração da Boa Vista, foi palco de grandes emoções. Da inesquecível equipe de profissionais de futebol da década de 60, existe ainda a garra transferida aos amadores e mirins, mantendo a glória desse famoso clube.

    Centro de concentrações religiosas, de longa data a região é marcada pelas festas da antiga Igreja da Santa Cruz, atualmente continuadas pela Igreja de São Joaquim, onde nunca faltam o bingo, o leilão, as barracas típicas e as tradicionais congadas.

    Na rua Mariz e Barros o casal Yolanda e Orlando Ferreira marcaram a tradição do samba na Boa Vista. No início da década de 50 fundaram o bloco “Brotinhos do Porto”, dezoito vezes campeão do carnaval da cidade, concorrendo nas categorias adultos e crianças.

    Em 1963 o “Brotinhos” desfilou pela última vez, levando a taça de campeã com a elogiada fantasia de Hobin Hoody.

    Mantendo a tradição, amigos do bairro fundaram, no dia 8 de fevereiro de 1.989, o “Grêmio Recreativo Escola de Samba da Boa Vista”. A escola marcou sua estreia como campeã do carnaval, em 1991, apresentando a Ferroviária como enredo.

    Para 1994, a agremiação promete uma homenagem ao bairro e à gente da Boa Vista, contando e cantando a rica história da região.

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Cadeira 07T
Patrono: EMÍLIO MARCONDES RIBAS
JOSÉ LELIS NOGUEIRA

    Médico formado pela Escola Paulista de Medicina. Iniciou sua carreira como médico-pesquisador no Instituto de Pesquisas Johnson & Johnson de Doenças Endêmicas; foi professor titular da cadeira de Microbiologia e Imunologia da Universidade de Taubaté, tendo deixado o magistério para dedicar-se à prática da Homeopatia, logo que concluiu os cursos de pós-graduação pelo Instituto Hahnemanniano do Brasil e pela Associação Paulista de Homeopatia, mantendo clínica nesta especialidade até os dias de hoje.

    Como educador, realiza palestras e seminários especialmente embasados nos temas ligados às suas publicações, entre as quais destacam-se: “Alicerces de Pindamonhangaba”; “História de Pindamonhangaba – Resenha para Iniciantes”; “O Caminho de São Francisco”; “Emílio Ribas – O Guerreiro da Saúde” e “Os Quatro Corpos”, esta última especialmente dirigida para aqueles que se iniciam nos estudos da Doutrina Espírita.

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